A lógica inexplicável do número contado de palavras

Todos sabemos que existem muitas falhas no nosso sistema de ensino. No entanto, nós pouco ou nada fazemos em relação a este assunto para além de nos queixarmos uns aos outros sobre ele. E, vendo bem as coisas, que mais poderíamos fazer? A realidade é que os métodos de ensino do nosso país, aos quais ouso chamar retrógrados, já estão tão enraizados que dificilmente mudarão de um dia para o outro, mesmo apesar do espírito aberto (e quase suplicante) a mudança da juventude portuguesa. É por esta razão que o progresso se deve realizar, tal como o nome indica, de forma progressiva, começando com pequenos passos.

Um destes passos deveria ser imperativamente a amputação do número restrito de palavras que é imposto nos elementos de avaliação aquando da expressão escrita. Esta regra faz nada mais nada menos que limitar o pensamento e a liberdade expressiva dos alunos! Num século onde a capacidade de expressão, o pensamento crítico e a criatividade têm um papel mais importante que nunca, como é que se pode considerar adequado cortar as “asas” ao próprio pensamento? O número contado de palavras não passa de uma decisão irracional e absolutista de limitar o pensamento, quando este deveria ser incentivado! Uma decisão irracional quase comparável à censura Salazarista, que também impunha o silêncio da opinião.

Analisemos a ordem: “Redija um texto de opinião, bem estruturado, com um mínimo de cento e trinta palavras e um máximo de cento e setenta palavras…”. É dada ao aluno primeiramente a informação do que é pretendido que ele redija – até aqui tudo bem; depois pede-se ainda que este texto tenha uma estrutura correcta (escrevi correcta com c, agora prendam-me) – um pedido evidente; de seguida começa a dar-se informações em relação à extensão textual, que deve estar compreendida entre as cento e trinta e as cento e setenta palavras – e é aqui que começam os problemas. O limite inferior do número “correcto” de palavras serve como um estímulo para o aluno, isto é, obriga-o a reflectir sobre o tema que lhe é proposto e a desenvolver essas reflexões, um exercício de pensamento louvável e que, sem dúvida, trará inúmeras vantagens no futuro ao aluno em questão no que toca a opinar criticamente sobre os mais diversos temas. Contrariamente, o limite superior tem precisamente a função oposta: a de travão. Em poucas palavras, é como se dissessem ao aluno “Pensa, mas não muito!”. Isto não é só errado como leva a um atrofiamento da arte de pensar, tornando-nos mais susceptíveis às constantes manipulações feitas em contexto de vida prática, quer por parte dos media ou das estratégias de marketing quer no que toca à vida política.

Poderá ser utilizado como argumento de defesa, mesmo assim, que esta restrição é uma forma de fazer com que os alunos desenvolvam a sua capacidade de síntese. No entanto, eu discordo. Somos constantemente confrontados com o conselho encorajador de “O importante é fazeres o teu melhor, o resto depois logo se vê”, pelo que eu coloco a seguinte questão: Se me é pedido para elaborar um texto de opinião subordinado ao tema, digamos, das novas tecnologias, porque irei eu escrever condicionada a cento e setenta palavras se com duzentas e cinquenta ou trezentas consigo expressar melhor a minha opinião e de forma mais rica? Porque irei eu elaborar um texto “assim-assim” quando posso dar “o meu melhor”? E pior, porque irei eu, que não me conformei com o limite que me foi oferecido pela força e decidi explorar as minhas capacidades, sofrer uma penalização de meio valor na minha nota final? E não esqueçamos também, claro está, para quem ainda se encontra céptico no que toca à (não) sintetização dos argumentos, com receio de que os alunos se ponham a escrever textos com “metro e meio” que os testes são realizados dentro de um intervalo de tempo, sendo, assim, a sintetização dos conteúdos uma inevitabilidade.

Assim, eu considero que estes critérios devem ser revistos, eliminando o limite superior de palavras, mas mantendo o inferior, para que possa ser servido o propósito de incentivo à reflexão que as escolas se deveriam preocupar em passar.

Notas:

Este texto foi escrito com seiscentas e oitenta e cinco palavras, porque tinha que ser escrito com seiscentas e oitenta e cinco palavras e não poderia ser o que é com menos.

Este texto não foi escrito em conformidade com o Acordo Ortográfico ratificado em Portugal em 2008.

2 thoughts on “A lógica inexplicável do número contado de palavras

  1. Vasco =) diz:

    Eish, ó Sara, comparar o limite de palavras do teste de português à censura Salazarista é forte! Ahhaha, mas adorei =) Sabes que no 12° fiz uma apresentação oral inteira a criticar o método de avaliação do teste de compreensão oral por valorizar apenas a memorização irrelevante e zero a verdadeira interpretação do texto. Levei ao limite o cuidado na forma, aquilo é que foi um desfilar de recursos expressivos, vocabulário arrojado, conectores de discurso a bel prazer, identificação expressa da tese e dos argumentos (com os respectivos exemplos, claro) e da conclusão… Juro que o raio do texto estava muito bom e eu até me saí bem. Levei a minha turma ao rubro e a professora até achou piada, mas depois comi um modesto 16 para não repetir a graça.
    Há todo um conjunto de absurdos na avaliação do ensino que te podem limitar e o Português é particularmente rico nesses testes ridículos…
    Well, vai escrevendo destas coisas boas que eu prometo ler tudo, com mais ou menos atraso… 😉 Bjs.

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    1. Sara diz:

      Ohhh, obrigada, Vasco! As tuas palavras fizeram o meu dia 🙂
      Gostava muitoooo de ter visto essa tua apresentação!! Os teste de “compreensão oral” são outra! Não acredito que exista alguém que ache verdadeiramente que aquilo avalia de forma competente a nossa compreensão do oral… Mas enfim, obrigada outra vez! Bjs 😊

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